Entreouvidos: sobre Rádio e Arte
“…você não consegue deixar de procurar um sentido, que talvez se oculte não nos ruídos isolados mas no meio,
nas pausas que os separam…
cada história que lhe parece adivinhar remete à sua própria pessoa, nada acontece sem que tenha a sua parte,
ativa ou passiva.
Do mais leve indício você pode extrair
Um auspício sobre sua sorte”
(Ítalo Calvino)
Sendo difícil estabelecer uma data precisa e única para o nascimento do rádio, alguns modelos acabaram por descrever sua gênese repleta de ausências e até alguns equívocos. Condicionados ao modelo do entretenimento, quase nos esquecemos de perceber a diversidade e descontinuidade de sua História. Observado como fenômeno de comunicação cósmica via ondas eletromagnéticas, será possível apontar a presença precoce do Rádio em situações aparentemente inusitadas.
R.Murray Shafer, compositor e radioasta1 canadense, sugere que o rádio existiu muito antes de ser inventado, estando presente nas transmissões religiosas da Antiguidade, quando vozes expressavam ordem diretamente dos Céus2. Esta versão sacralizada do rádio pode ser acrescida às inúmeras histórias do folclore dos povos nas quais mensagens são carregadas pelos ares, irradiadas por gargantas invisíveis – e de fato, onde os telescópios óticos não podem ver, os radiotelescópios conseguem realizar um mapa através do registro sonoro.
Nos anos 30, o teórico alemão Rudolf Arheim acreditou ser o rádio “…um canal por onde os pensamentos vaguem tão longe quanto desejarem e na ausência do visual surge uma ponte acústica entre vários sons: vozes conectadas ou não a uma cena de palco, são agora da mesma carne que a discussão, recitação, canção e música”.
As idéias alinhadas pelo teórico já vinham ecoando desde os oitocentos quando Thomas Edison em 1878 justificava utilidade para o ressoante fonógrafo enumerando algumas funções tais como “uma máquina para ditar discursos, um livro para os cegos, um relógio que anuncie as horas, um brinquedo para crianças e, para máquina para reproduzir música”.
Sua invenção conjugou-se numa cadeia de industrialização a ponto de alcançar o século 20 como ameaça diante da qual Dadaistas, integrantes do Bauhaus e Futuristas iriam vociferar. Protestavam contra a compreensão burguesa da arte na intenção de promover uma comunicação de massa homogênea, e responderiam com o exercitar novas surpresas, fugindo desta função de meros reprodutores de mídias. Inspirados naquela “Arte dos Ruídos”, livro publicado por Luigi Russolo em 1913, músicos passaram a incorporar sonoridades dissonantes e barulhos em suas obras, adicionando sons de máquinas, vitrolas, como George Antheil que escreveu em 1929 uma “Sonatina para Rádio”, junto a uma série de outras obras para piano considerando estar produzindo “algo próximo a sonhos”. De fato, as novas formas de gravação e reprodução sonora nutriam facilidades ao imaginário ao oferecer novos espaços aos olhos, através dos ouvidos. Inicialmente alimentando a expansão de uma cultura da escrita para o campo fonético, pouco depois precisando funcionar industrialmente, esta voz-som mecanizado seria o uniforme ao qual todas as outras vozes deveriam se ajustar, reduzidas em seus elementos, naquilo que Scarassatti chamou de “…uma predominância de uma ditadura extremamente autoritária e sutil que é a cultura do ouvir que pegou o projeto político do deus ”único, que foi a tonalidade renascentista, e que foi cooptada pela indústria cultural, deus máquina, que impede que se escute…” Esta mesma audição dirigida seria sintetizada nas emissoras de rádio pela sonoplastia tradicional aonde o elemento sonoro pretende oferecer uma cópia do real, embora sofresse ocasional hiato na esteira dos acontecimentos sonoro-musicais, na emergência dos instrumentos eletrônicos, micro-tons, expansão harmônica…além disso, também a voz e suas falas passam por formatações aonde, indica Janete El Haouli “…descartam elementos expressivos da vocalidade em favor da eficiente comunicativa da voz. Movimentos da laringe, sopros e ruídos “indesejáveis” são completamente excluídos e um rico leque de matizes instintivos, irracionais são abortados a fim de que reine a soberana voz-veículo-da-palavra e sua função comunicativa-verbal”
Entretanto, o movimento de padronização das máquinas falantes – fonógrafo, disco, telefone, rádio e assim por diante espelhados em corpos igualmente padronizados – vai encontrar ao longo da história outras vozes, cujas falas inadequadas acabam por fazer respirar a própria evolução de uso desse maquinário.
Pensadores radioastas como Allen S.Weiss reforçaram a idéia de um rádio sem aparatos tecnológicos ao afirmar que “somente quando nosso corpo inteiro se torna uma boca é que nós, verdadeiramente podemos falar”.
Assim como no rádio, a coisa que fala é também a que escuta…Beckett resumiu: “…sem ouvido eu o terei ouvido, e o terei dito, sem boca eu o terei dito, terei ouvido fora de mim, talvez seja isso o que sinto, que há um lá-fora e um lá-dentro e eu nomeio, talvez seja isso que sou, a coisa que divide o mundo em dois, de um lado o de fora, do outro o de dentro (…) talvez seja isso que sinto, eu me sinto vibrar, sou o tímpano, de um lado está o crânio, do outro o mundo…”
Expectativas de diálogo levadas a conexão aos aparatos de comunicação aonde o paradoxo da incomunicabilidade se exacerba na mecanização eletrônica. Marshall McLuhan, lembra Roberto D’Ugo, “…no início dos anos 60 antevê a recuperação de uma sensorialidade envolvente, típica das culturas orais, no contexto cibernético dos sistemas de comunicação eletrônica (…) elegendo a arte, como radar: um alerta de ordem estética (…) e o próprio humanismo como os meios capazes de orientar e aguçar a percepção humana em face do embotamento causado pela complexa rede de comunicações eletrônicas criadas pelo homem moderno ”
Transmissão, desarticulação, metamorfose, mutação, sintonizando num rádio sem imagens nem padrões de programação, aonde artistas como Antonin Artaud deixaram seu desejo por criar uma mensagem que pudesse conectar pontos orgânicos, iluminar o sistema nervoso. Outros, como o canadense Glenn Gould propuseram extrair música das palavras, construindo na linguagem radiofônica um rádio documentário aonde as vozes dos entrevistados foram editadas numa composição em contraponto.
Rádio igual a música quis Gould, rádio igual a paisagem imaginária propôs John Cage, radiobiorrítmico sugere Murray Schafer, rádio polimorfo na visão do filósofo Tetsuo Kogawa, entre muitas outras idéias, o rádio chega ao terceiro milênio tratado como meio para inúmeras possibilidades de comunicação e criação. Mas como tais propostas poderiam encontrar lugar numa emissora de rádio, formatada sobre uma grade de programação?
Na dobra
…cada palavra sim, cada palavra é uma semente
(Raduan Nassar)
Quando alguém fala um mundo se abre.
Um homem sem palavras, pondera o Dr.Tomatis se arrisca a estar desumanizado pois não poderá explorar a exteriorização do que pensa. O homem fala e por meio desta fala, escuta sua mais rica forma de comunicação, iniciada naquele espaço aquoso da gênese de cada um: antes mesmo de nascer, as orelhas captam os sons articulando mensagens. Depois do nascimento, esta memória auditiva precisará encontrar sentido para estes sons que passam a ecoar na acústica atmosférica, fazendo com que a audição seja intelectualizada pela linguagem.
Sair da água, entrar no ar. Reconhecer e reproduzir.
Um som, uma palavra.
Então, neste novo território se multiplicam as vozes das coisas falantes. No deslocamento de ar, na movimentação mínima do vento, o invisível se faz presente. Ali, algo pode ser narrado, pode ser dito e alguns outros, conseguem ser sussurrados. A mesma voz ressoante na água daquela noite uterina, no chamado estado afetivo da linguagem dará lugar ao estado lúdico13 assegurando através do condicionamento áudio vocal que esta tomada de consciência do mundo seja sonora. Criar um vocabulário relativamente simples dando conta da complexidade da realidade sonora afirmada a cada instante. Traduzir de forma rápida e concisa a soma dos estímulos sonoros, ainda considerando os conteúdos de representação simbólica. Falar e entender, emitir ou receber, são dois atos dotados do mesmo valor e de um mesmo significado psicosensorial e psicomotriz.
Cada onda silábica será definida pelas orelhas, esquerda e direita, cuja função não é idêntica até porque abrigam muito mais do que o mecanismo da escuta. Envolvidas no jogo acústico dos neurônios auditivos, um sem número de códigos na discriminação da linguagem falada vão jogar seus dados. Porque existe a necessidade de entender o que está sendo dito. Esta ação, classificada pela medicina como “discriminar” é algo impalpável: o tipo de mecanismo do corpo humano aonde a ciência ainda não consegue explicar totalmente seu funcionamento, não sabendo exatamente o que determina esse discernimento auditivo.
Mas existe.
Você pode ouvir e não compreender. Nesse caso, o que se escuta pode ser o volume sonoro, os sons vibrando sem nexo gramatical. Além disso, mesmo ouvindo, você será conduzido por suas referências culturais, emocionais.
Ouve-se o que se quer ouvir?
Não exatamente.
Talvez mais apropriado fosse afirmar que ouvimos o que podemos e desejamos ouvir, dentro dos limites estabelecidos por parâmetros exteriores e interiores. Controlar o que se diz, construir um desencadear de idéias coerentes, passam a fazer parte nesta dinâmica, elaboração dos discursos através dos quais as mensagens são formuladas e as coisas faladas.
A coisa fala. Audição seletiva responde.
Duas faces da mesma moeda, ou como já disse Montaigne em seus Ensaios : “…as palavras pertencem metade a quem fala, metade a quem ouve”. Processando a escuta, imediatamente reprocessamos possíveis significados para ela.
Então alguém liga o rádio.
Ali, as vozes perambulam impondo suas idéias e produtos desenhados no limite do consumo, na freqüência negociada pelo mundo civilizado. As vozes, mesmo aquelas sem corpos, nunca foram inocentes, emanam palavras e sons que parecem aprisionados pela linguagem corrente no fluxo cotidiano repetindo o mantra encantatório das emissoras radiofônicas.
Neste espaço tão codificado existirá a possibilidade de encontrar uma dobra, como desafio já descrito por Cynthia Gusmão em seu esforço por fazer com que esta inter- arte surja em meio à textura do cotidiano, ilhas no ambiente radiofônico institucional. Utilizar os versos de Cyrano na aparência mais bela do outro, ou palavras de Maomé para remover montanhas, acionando máquinas de ruídos ou sons articulados em poema fonético, Ursonate, um clássico ainda radical…
outra dobra
Algo se passa além dali.
No espaço conjugado dentro e fora já denominado “inter”, o rádio escuta e fala para outras elaborações. Nesta região impregnada por intersígnos, como descreveu Philadelpho Menezes, é possível mesclar, renovar ou mesmo inaugurar nova técnica na transposição de um elemento a outro, da poesia à fala radiofônica, da pintura à descrição verbalizada das cores, descrevendo uma paisagem geográfica através de sua sonoridade… neste vão, nesta dobra engendrada entre a informação e o entretenimento, poderá ser possível reproduzir o sentido dilatando sua significação.
Não se trata de perseguir uma utopia radiofônica mas traçar um objetivo de trabalho ao produzir um deslocamento resistente e pontuado, embora coerente com o restante, na grade de programação de uma emissora. Lídia Camacho destaca a importância presente na procura individual e grupal destas formas de arte sonora englobando as mais variadas manifestações de caráter estético realizado dentro de uma emissão radiofônica (text sound, hörspiel, soundscapes, readymade sonoro, etc). Sintonizando desafio maior, radioartistas como a brasileira Janete El Haouli exercitam a possibilidade de “trazer o rádio para dentro do rádio. Um rádio livre, de invenção(…) percorrendo diversos códigos e multiplicidades estéticas (…) ruptura do tempo linear dessas convenções sonoras(…) o rádio não linear, rizomático sem trajetórias fixas…” O século XX aceitou a fusão das linguagens trouxe à cena a percepção não apenas do olhar mas por interferências possíveis deste olhar oferecidas por obras de artistas plásticos, músicos, bailarinos ou poetas. Emissões radiofônicas também seriam objeto deste encantamento. John Cage vislumbrou naqueles dozes aparelhos de rádio expostos numa vitrine em Nova York a chance para realizar sua obra Imaginary Landscapes numero 4 considerada por alguns críticos peça inaugural na utilização do rádio como ferramenta sonora, Mauro Costa destaca que “o rádio aparece de diversas maneiras em sua obra : usa rádios como instrumentos dentro de obras musicais – aproveitando seu potencial aleatório (o que estiver no ar na(s) estação(ões) sintonizada(s) na hora, vai fazer parte da obra); produz para o rádio, desde trilhas sonoras a peças de rádio-arte stricto-senso; usa a emissão radiofônica como instrumento ou ferramenta; compõe uma peça em homenagem a uma estação de rádio (WBAI); e até suas conversas em programas de bate-papo no rádio tornam-se como obras (as conversas com Morton Feldman na WBAI em 66-67)” O estúdio de radio passou a ser um instrumento na criação, impossível esquecer as contribuições anteriores de artistas como Pierre Schaeffer, comenta Rodolfo Caesar “…em 1948
chaeffer na ex-ORTF (Office de Radiodiffusion et Télévision Française) inventou e radiodifundiu a “musique concrete”…
Pensar e utilizar o rádio para além de sua configuração midiática não é atitude recente. No Brasil dos anos 80 o músico Wilson Sukorski e os artistas plásticos José Wagner Garcia e Mario Ramiro, apresentavam sua instalação PTYX causando surpresa ao empreender proposta plástico-sonora reunida em transmissões interativas de rádio e televisão, numa galeria de arte em São Paulo. Mais ou menos na mesma época, no Rio de Janeiro, o compositor Aylton Escobar gravava sua peça para rádio de pilha e instrumentos musicais, enquanto o artista plástico carioca Cildo Meireles empilhava num Museu mais de 800 aparelhos de rádio ligados em emissoras diferentes, construindo sua Torre de Babel26. Considerado um dos pioneiros na utilização de sons e música em suas obras, apresentou obra em disco de 33 rotações, aonde o som feito utilizando oscilador de freqüências sugeria a construção de uma escultura sonora, projetando imagem visual através da percepção auditiva, “…eu estava muito interessado em topologia e achava que talvez, uma maneira mais eficiente de abordar questões topológicas fosse através do som, da audição. Então fiz este disco MEBS/CARAXIA que é uma mistura de fita de MEBS com galáxia, quer dizer, fita de MEBs para MEBs e caracol/ galáxia, que possui esta estrutura espiralada. Na verdade fiz dois gráficos, num pequeno estúdio na Lapa, e me lembro que queimei muitas agulhas de gravação por causa das freqüências…o disco então é isso: uma tentativa de reproduzir sonoramente um gráfico que em princípio, era um gráfico visual”.
São comuns as referências da cultura sonora e radiofônica encontradas na obra de Cildo Meireles, como as vozes em “Sal sem Carne”, o som surdo mas visível pela acuidade auditiva em “Blindhotland”, ou mesmo as lixas friccionadas pelos passos em Fiat Lux28 mas aquela mais objetivamente construída com rádios aconteceu em “Babel”…todas as palavras que conheci, e mesmo quando criança, era isso que me despertava uma emoção que eu não conseguia descrever…ver alguma coisa de longe. O outro lado, a vida lá, alguma coisa que você vê no meio da noite, uma montanha, no topo de uma montanha… a luzinha, e um dia eu descobri a palavra “lejos”, que eu considero a palavra mais bonita. Eu tinha três, quando criança, eu tinha mais duas, que considero o cúmulo da eufonia.(…) uma é Philadelphia… repetia isso era como me transportasse, era “Theóphilo Othoni”…mas enfim, isso era para chegar no seguinte: muito do Babel é essa questão meio recorrente em meus trabalhos que é a questão da escala, quer dizer, você ter a possibilidade de algo ínfimo e outro bem grande, o indivíduo e as macro estruturas…Babel nasce muita da sensação que eu tinha quando criança e adolescente, ficando no quarto ouvindo rádio. Ali estava presente esse conceito de “lejos” porque era uma voz, um espaço, que não era aquele dali, o quarto, era uma outra coisa. E isso sim, já tinha uma carga de mistério muito grande amém dos leds, dependendo da época mudava a cor das luzezinhas, então sempre tinha essa associação entre a voz, o som…Babel formalmente se estrutura nessas luzezinhas porque o ambiente é todo em azul profundo, um clichê do espaço sideral, claro, também se estrutura nas vozes, nessa pluralidade de vozes e som…mas eu queria que o volume mesmo da torre (de 800 aparelhos de rádio empilhados) fosse quase imperceptível, e quando você entrasse na sala se deparasse com esta cacofonia (…) Babel é um estudo para espaço no sentido de que é uma peça para você ver de olho fechado”
A idéia de comunicação radiofônica vem sendo exercitada no campo das artes plásticas aproximando e dialogando com propostas da classificada “arte sonora”, embora desde o início a gramática da mensagem radiofônica foi sendo reinventada no som como elemento principal, construindo e desconstruindo padrões de escuta… num dos primeiros passos desta história, Dziga Vertov afirmava em artigo no “Kinopravda e Radiopravda” : “…rádio olho abolirá a distância entre as pessoas não apenas permitindo que os trabalhadores do mundo todo enxergem mas, sobretudo, que possam se ouvir”
Um filme sem imagens, também imaginado por outros como o cineasta experimental alemão Walter Rutman (1887-1941) ou na virada do século 20 ao 21, a realização de “Blue”, derradeiro longa metragem do inglês Derek Jarman aonde suas reflexões em voz alta se projetam na tela monocromática, ocupada pelo tom forte do azul. Este azul como eternizado nas telas do pintor francês Yves Klein, oferece imagem para que a voz de Jarman se projete, tendo ao fundo os ruídos do hospital em que estava, e a trilha sonora composta por Simon Fisher Turner. Um filme sem imagens, um radio-olho ou rariok como indicou Vertov, uma paisagem sonora, diria Schaeffer…
As reflexões de Arheim e outros artistas seriam assim retomadas, como naquela exposição realizada em 1983, uma das primeiras referências ao termo conceitual “arte sonora”. Intitulada “Sound/Art”,e realizada no Centro de Esculturas de Nova York sob curadoria de William Hellerman, reuniu trabalhos que tivessem por objetivo a máxima: “ouvir é uma outra forma de ver”.
No rigor do termo, “arte sonora” deveria se referir apenas obras cuja proposta utilizasse o som como matéria. Nesse caso, trabalhos sonoros em artes plásticas estariam em outra categoria, em recente pesquisa sobre os elementos constitutivos desta arte Felipe Vaz concluiu, “…a despeito das dificuldades quanto às múltiplas definições do termo arte sonora(…) mesmo sem poder aceitar uma definição única, há um “boom” de arte sonora em curso”
o crítico Paulo Venâncio Filho:
“é possível evocar experiências sonoras individuais e históricas porque hoje, existe muita permeabilidade entre uma coisa e outra”.
A percepção atual no campo das artes plásticas envolve não só a visualidade, o olhar, mas as interferências possíveis neste olhar. Um campo mais amplo de observação, envolvendo outras linguagens, incorporando cheiros, luzes, temperaturas, sombras, poesia, dança, emissões radiofônicas… o artista passa a ficar atento a esses territórios, enriquecendo ou alterando o que antes
era meramente visual. Em propostas como o Telembau ou
Decabráquio radiofônico, idéias de rádio transitam freqüentes na sugestão destes objetos sonoros do paulista Paulo Nenflídio e suas engenhocas inventivas como o “Rádio Nenflídio”, o “Telembau Telegráfico” ou o “Decabráquito Radiofônico”, manipulados para transmitir e receber mensagens por ondas eletromagnéticas. O “Rádio Nenflídio”, peça exposta pela primeira vez em 2005, utiliza circuito eletrônico, tocadores de CD e MP3, amplificadores estereo. Descrito pelo artista como simulacro de rádio numa caixa de madeira com a aparência de um rádio antigo, contendo uma programação (ruídos e interferências de rádio, programas, entrevistas e experiências sonoras realizadas pelo autor) num aparelho de CD player embutido no objeto. São cinqüenta faixas de áudio que tocam, uma após a outra, aleatoriamente, produzindo a sensação de ser estar ouvindo uma “verdadeira estação de rádio”.
Interessante aqui observar como este “conceito” de emissora radiofônica, assentado em programação seqüencial e repetitiva, é identificado como “verdadeira estação de rádio”. Noção imprópria para aplicação no caso deste “Telembau”, objeto semelhante ao instrumento musical berimbau, utilizando circuito de rádio para construir um diálogo: …funcionando em par, a uma distância de até trinta metros um em relação ao outro, ao se percutir a corda com a baqueta é enviado um sinal para o outro que ouve as batidas transformadas em “bips”. Dessa forma pode ser utilizado para comunicação em código Morse”.
Este trabalho faz convergir as informações presentes na cadeia de invenção dos primórios, mais distante das “emissoras de verdade”. No mesmo ano de 2006, Nenflídio desenvolveria seu “Decabráquito Radiofônico”, reunindo dez aparelhos de rádio FM com visor digital em caixas de madeira. Este objeto e seus dez braços falantes, possuindo um teclado com dez teclas. Quando tocadas, acionam o som desses dez rádios, gerando sons emitidos pelos alto falantes instalados nas extremidades dos braços, criando uma polifonia semelhante a um órgão de tubos. Este instrumento de teclas depende da transmissão das emissoras locais, desta forma, o objeto conecta-se ao lugar por meio de ondas eletromagnéticas, “tornando audível, o invisível”, segundo seu autor.
Idéias de rádio surgem neste campo dos signos e significados transpostos, mesclando uma história a outra, elementos transbordados como portas de saídas para o pensamento embutido: até que ponto existe rádio nestas propostas ?
Não se trata de traduzir rádio como linguagem visual mas, incorporar o instrumento peculiar e preciso deste meio de comunicação a uma forma de pensar artística, no território das artes plásticas.
Além disso, o torpor na velocidade dos últimos produtos do consumo e no atual panorama das estações multiplicadas pela radiodifusão multimídia apresenta no Brasil oferta generosa de canais, paradoxalmente reduzindo a variedade de escutas. Compensações aparecem abrindo opções como o podcasting.
Ressonância deste ar articulado, dobra limite se faz ouvir como eco persistente da memória, reanimada nas facilidades relativas do espaço cibernético, como lembra o artista plástico e radioasta Romano, o áudio possibilita essa expansão sem limites, que atravessa as paredes e reúne os ouvintes em torno de um coletivo virtual (…) ele passa pela webradio, através das conexões radiofônicas e redes de alta velocidade, e pela antena é transmitido via ondas de rádio. Ele é o pensamento móvel dentro do fluxo midiático. E carrega o conteúdo do trabalho, nossas frases, nossos pensamentos.
media artista Romano vem apresentando propostas relacionadas a radiofonia em suas performances, instalações e transmissões de radioarte em emissoras livres e comunitárias, destacando poesia sonora, “sound art”, e música em seu programa oinusitado. Explorando o que nomeou de “cut-up” sistema no qual os artistas e/ou seus trabalhos são pré gravados se inserindo em seqüência, sem comerciais ou locução formal entre eles, ou aind a preocupação de prestar explicações sobre cada trabalho individualmente, fazendo soar como conjunto sonoro. Transmitido pela Rádio Satã, emissora livre localizada no bairro da Lapa, Rio de Janeiro, disponibilizando algumas edições em seu site na Internet, este programa acabaria resultando em projeto social incluído numa oficina de mídias. Além disso, Romano já apresentou diversas propostas em galerias de arte e museus, como o projeto de intervenção sonora realizado durante o evento O que Eu Faço é Rádio! Distribuindo pequenas caixas de som ao longo da rampa de acesso do Museu de Arte Contemporânea, para sugerir o diálogo entre a fluidez sonora e a permanência da arquitetura. Os visitantes do Museu, ao subir a rampa de entrada, iam escutando e construindo o clímax desta paisagem sonora: o barulho da água intensificado medida em que o final da rampa se aproximava, e a paisagem ao redor definindo a arquitetura e o contorno mar – real e audível. Sua performance Falante
Entre os avanços oferecidos pela tecnologia das comunicações se alinham transmissões em alta definição e novos tocadores de áudio, configurando opções contemporâneas ao antigo “radinho de pilha”. Versões atuais dos canais de rádio em FM, audiocast customizados, possibilitam arquivar e ouvir uma seleção altamente segmentada de sua preferência. Mais uma avalanche de possibilidades sugerem a diluição do aparato de comunicação que até aqui mereceu o nome de “rádio”.
Arte de rádio
O texto de abertura do simpósio “O Ouvido Pensante: o futuro do rádio” lembrava que este talvez seja um dos últimos canais utópicos de informação, como afirma Regina Porto, premiada radioasta paulista…“o núcleo mais ousado da experiência radiofônica mundial, embora orientado por um pequena vanguarda dispersa, e mesmo não constituindo uma voz única, tem sido responsável pela elaboração de gêneros inovadores, bem como por um novo conceito de sonoridade”. Rádio de Invenção, ou, nas palavras do dramaturgo alemão Klaus Schöning, do Studio Akustische Kunst da WDR, em Colônia, “arte de rádio, não apenas arte no rádio; veículo que produz e não apenas reproduz”.
O começar deste século 21 apresenta singular topografia: o reconhecimento de todo um passado na história das transmissões radiofônicas e as inúmeras conjugações com seu presente no entusiasmo da tecnologia; o crescimento vertiginoso de conectividades portáteis cujo acesso se oferece em diversos aparatos de comunicação eletrônica, e como bem colocou o pesquisador e produtor radiofônico : “a instauração eminente de uma nova pragmática eletrônico-digital de produção, distribuição e consumo de bens culturais colocando em xeque, com cruel objetividade, mitos e competências de criação, produção, financiamento e recepção”
O momento é propício ao mergulho nesta memória do rádio percebendo fragmentos dispersos como oportunidades de tropeço em seus conceitos. Espécie de parada cheia de surpresas, redefinir o que seja rádio traduz o desejo contemporâneo neste impulso do eterno retorno, embora nunca para o mesmo lugar. Kogawa lembra Heidegger quando diz que “o fim sugere conclusão, o lugar no qual toda história é reunida em sua mais extrema possibilidade”. Também Edward Said debruçou-se no frescor desta quase finitude, enxergando na obra final de autores como Beethoven Strauss, Genet, Visconti, Gould ou Beckett um “estilo tardio” trazendo novo idioma“…a distinção importante no final colocará por um lado, o reino da natureza, por outro, a história humana secular”. Tal noção de começo, momento de nascimento ou origem no contexto histórico seria todo o material que surge como um pensamento se tornando um processo, até se estabelecer, se institucionalizar, como um projeto, uma vida… A finitude não cabe aqui como algo puramente da matéria, mas como sobrevida nesta procura por “novo”, este que surge no fim. Seria então preciso ouvir o estilo tardio deste meio de comunicação, mantendo as orelhas alertas na escuta do “mundo para repensar o rádio” como bem colocou Rodrigo Manzano … ainda Manzano citando Gilles Deleuze, “toda obra de arte não é um ato de resistência e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo” tornando clara a percepção deste rádio arte sonora que insiste em sobreviver aos desfalques de todo tipo e na substituição tecnológica, na sofreguidão do consumo dos últimos aparelhos, prossegue falante como uma boca porque finalmente (mas não por fim) já disse Bacherlard, todo universo quer falar.