Memoânfora

MEMOÂNFORA
“Si de aire articulado
no son dolientes lágrimas süaves
estas mis quejas graves,
voces de sangre,
y sangre son del alma.”
– Góngora*[1]
qual o somde quem veio?
passos mais passos e a voz,
porque viestes de tão longe
alguma voz no tempo?
o que uma ânfora pode encerrar?
qual o som de quem veio?
acontecia ao falar.
porque ressoava e assim encantava:
ondas atravessavam ar, vibração empurrando ossos
no discernir corpóreo. tudo parecia simples, direto.
acontecia ao falar:um mundo surgia.
abriu os olhos dentro daquela ânfora, com o som de passos
batendo agudo como ventania.assim, sua cabeça esqueceu o resto do corpo nos pés de outro. tudo acontecia ao redor de um eixo de pedra.
partes quebradas narram aquela históriano vai e vem das frequências sonorasecoadas na memória da água, azeite ou vinho cunhando formas na pedra de barro, agora porcelana.
água possui memória nas substâncias que estiveram diluídas nela mas não se encontram mais ali, viajou absorvendo, guardando informações de todos os diferentes lugares que atravessou, podendo conectar pessoas que dela beberam. ânforas milenares estiveram em muitos momentos, histórias, carregando água, azeite ou vinho. Seria talvez possível escutar essa voz, apreciando aquilo capaz de evocar: um tempo oferecendo presença dessas coisas que são invisíveis mas tão reais quanto a tangível concentração de fibras pressionadas de animais. Os sumérios clamam por sua invenção que teria vindo de um herói guerreiro de Lagash, alcançando a história de São Clemente e São Cristóvão onde vai servir para embalar as sandálias nesta lã prevenindo bolhas enquanto fugiam de perseguições. No fim de suas jornadas, o movimento dos passos e o suor transformaram a lã animal em meias de feltro. Dessa forma os muitos passos dados por mim transformados em som e feltro habitam essa memoânfora: vinda através da voz nas fibras que habitam sonhos – mas existe algo mais real do que um sonho?[2] arrancando do imaginário seu prazo de validade. assim, se nessa voz nada perdura, então de onde vem? de outro lugar onde éramos, diria Sócrates*[3] aqueles que se contentavam em escutar a voz do carvalho ou de uma pedra e nesse instante caminham para sua dissolução nos ouvidos que a escutam.
Notas
[1]Luis Gongorra – Soledades
[2]Samuel Wood apud M.Blanchot
[3]citado por Maurice Blanchot : une voix venue d’ailleurs (2002)
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Fotografia: Lucia Helena Zaremba