Tunga é Música

Um tempo largo, imerso na sintonia da ressonância como transporte de inteligência. Tunga não fazia arte, vivia arte: tudo era movimento de quem se pertencia. Partes dessa história, sejam elas futuro ou passado, remetem àquele dia no pequeno prédio do Leblon. Subi três andares de escada escutando algo novo para mim: Bob Marley and The Wailers, clima balanço dançante. Paulo Venancio1 também ali morava volta um pouco no tempo: ”primeira lembrança Tunga escutando Bob Dylan no quarto do apartamento em que morava com os pais em Copacabana. Logo depois me deu, xerocado, o songbook completo de Dylan, ouvi pela primeira vez Leonard Cohen; “Suzanne takes you down to her place”. Na maravilhosa discoteca da antiga Biblioteca Thomas Jefferson na Praça Cardeal Arco Verde emprestávamos Edgar Varèse, Morton Feldman, Terry Riley, Steve Reich, Phillip Glass, e antes disso muito Satie. Nossos interesses musicais se cruzavam, jazz já estava em nós; Coltrane, Monk, Miles, Ellington, Billie Holiday… tudo e todos”

Síncopes do Monk eram suspense, deslocamento rítmico que meus ouvidos entendiam como adiamento, quase silencio. Sensação inebriante de forma diferente mas complementar, talvez pudesse ser encontrada nas ressonâncias milenares da música sufi dos Derviches, o canto difônico de Tuva, música tibetana ou ritmo dos Pigmeus da Polinésia. Tudo que fosse encantatório interessava a Tunga, som como poesia, algo além do corpo físico embora totalmente impregnado desse corpo físico, não por acaso gostava de rock, Rolling Stones sobretudo. Venancio retoma: “vivia tentando tocar um “berimbau de boca” sem muito sucesso. Tínhamos o projeto de tocar saxofone; comprei um e sai da loja com ele sem a caixa para espanto das pessoas ao redor – e Tunga nem isso. Tenho até hoje o “Silence” de Cage que me deu, com algumas anotações suas. Adorava Roberto Murolo, napolitano que cantava em dialeto – encontrava nele Caymmi. Fomos dos primeiros a curtir Walter Franco o disco branco e nele “Canalha”. Também o primeiro disco do Dire Straits quase furou de tanto tocar no apartamento que dividíamos. Pianista só Glenn Gould. Fomos a todos os shows de jazz que aconteceram no Rio de Janeiro dos anos 70; Miles Davis, Mingus, Bill Evans, Modern Jazz Quartet. No Teatro Municipal procurávamos sentar do lado esquerdo para poder ver as mãos do pianista dedilhando.

Alguém pode pensar que isso seria um detalhe, era bem mais: cada gesto, cada movimento, cada inflexão de mão seria certamente um desenho, uma escultura, observações com ritmo… o que ele fazia – aqui vale lembrar seu amigo Helio Oiticica – era música. Nenhuma surpresa portanto em observar quantos de seus trabalhos foram sonoros, como lembra Venancio: “na instalação, “Pálpebras” (1979) no subsolo do antigo cinema Pax, Praça General Osório, a trilha instrumental, era “Smoke Gets In Your Eyes”. Ali na galeria era instrumental, em casa as vozes não por acaso eram dos The Platters, mistura de soul com fumaça de cigarro.

“Em outra “ÃO” (1981) Galeria Candido Mendes, Frank Sinatra cantava só o verso “Night and Day” num looping interminável”. Esta instalação foi apresentada no Gabinete de Arte Raquel Babenco, São Paulo (1983) nessa época conversando com Tunga perguntei sobre esse Sinatra interminável como o túnel (também projetado em loop no filme na galeria) disse: “as palavras da música são presentes e são referentes, signos de uma temporalidade contínua num contínuo que ali também se vê na trajetória do filme, o inebriar da música, o dançar, a circularidade sonora possível, elementos na imersão desse espaço”. Insisti e quis saber sobre o porque da voz do Sinatra, respondeu: “olha é difícil um depoimento sobre o papel de qual seria a função do vermelho num determinado Picasso onde existem três cores complementares…quer dizer, a coisa não funciona bem assim…embora as coisas sejam signos elas se inserem num contexto, tomam valores de símbolos ou seja desdobram em sentidos sistematicamente quanto mais você entrar nelas mais sentidos vão gerar”. Some-se a essas “coisas” a música que delas poderia ser extraída de forma nem tão convencional. Interessante pensar em pálpebras ofuscadas sonoramente por essa fumaça nos olhos, associando o piscar inaudível dos cílios à fumaça de um cigarro. Esse tipo de ironia era muito comum na inteligência dele ao mesmo tempo poética, científica e bem humorada. Costumávamos conversar ao telefone escutando João Gilberto. Vozes ou falas: Gilberto fala cantando e Sinatra também, buscava como disse, encontrar na voz humana algo que é irredutível. Ou seja, é onde a palavra encontra o sentido quase que, vou forçar a barra no argumento, mas é pra onde ela me remete, que a palavra cantada ela é a encarnação do mistério. Quer dizer, a palavra, o sentido da palavra, só se dava plenamente nos textos arcaicos sagrados quando ela era falada. As vozes em suas obras podem não estar cantando mas fazendo música com sua fala-presença. Trançadas como uma Teresa (1998) nome que se dá a essas tranças feitas com lençol ou cobertores para escapar de alguma prisão, ou claustro – aquele de Santa Teresa D’Ávila. Esta performance recebeu o nome Resgate quando realizada na inauguração do Centro Cultural Banco do Brasil paulista, causando verdadeira comoção onde se reuniram cem rapazes gritando, agitando suas teresas (tranças daqueles cobertores de prisioneiros) três bailarinas da cia Lia Rodrigues e Arnaldo Antunes. A sonoridade dessas vozes ecoava. Tunga escreveu a letra: o texto é meu. levei o texto, e o texto é todo passível, como neste trabalho, de se tirar daqui e botar ali. Então cada frase é uma totalidade que você pode deslocar: Teresa na mesa, agora está presa, acesa Teresa.

Arnaldo compôs a música em cadência marcada embora descontínua: “escapa teresa/ se manda teresa/100 terra teresa/ agora tu reza teresa/azula teresa/se abraça à teresa/vem cá minha teresa”. Não por acaso Suely Rolnik chamou de “vibráveis” as obras de Tunga, onde neste tempo não linear a ressonância do fluxo contínuo pode ser uma escada interminável levando ao Céu e ao Inferno: Heaven’s Hell/Hell’s Heaven (1999) onde a trilha ressoava Marisa Monte respirando. Antes disso, na X Documenta de Kassel (1995) escutamos Charles Aznavou cantar apenas o verso “c’est triste Venise” alternado com Jorge Ben na frase “o que está em cima está embaixo” enquanto na perfomance moças andavam sustentando com suas cabeças um grande chapéu de palha típico dos gondoleiros venezianos. Lúcido Nigredo (1998) as placas de cristal no chão sendo quebradas quando pisadas, não seriam exatamente música, mas presenças sonoras, então perguntei: quando você quebra um cristal, quebra um som continuo que estava implícito naquela peça que era um sino de cristal, quando você quebra esse cristal essa transparência colorida porque ali tinha uma cor vermelha pode definir outro olho ?
define uma etapa nova do olhar, as coisas estão em transformação e as transformações sucessivas não necessariamente se fazem perceber como rupturas muitas vezes essas rupturas olhadas com olhar de minuto nos parecem coisas continuas também, mas essas transformações continuas nos surpreendem quando piscamos longamente os olhos e ouvimos a diferença de som entre uma tonalidade e a outra. Talvez como o som de sapos e moscas em Laminadas Almas (2004) entre outros exemplos. Simon Lane, grande amigo, escreveu o poema True Rouge inspirando a instalação de mesmo nome: ali também o som vinha dos objetos de vidro assim como vinham das colheres penduradas pelo músico Sergio Souto durante a performance Há Sopas (1997) na qual o poeta Edi Simons recitava alguns versos, e Simon também. Em outra performance acontecida no evento Orlândia (2001) ao lado de seu pai, o poeta Gerardo Mello Mourão, e ainda Simon realizaram o belíssimo Pequeno Milagre: por trás de uma parede construída com barro e peixes, falavam versos e sons percutidos, sendo difícil traduzir essas obras, como bem colocou Simon: “the magician never gives away his secrets”… segredos que as vozes guardam, como Dylan Thomas. Tunga adorava escutar nas fitas k-sete gravadas pela Radio BBC um tanto por conta da espessura da emissão sonora masculina, um tanto por conta da sensação embriagada que oferecia, este canto dylanziano foi escolhido para ser utilizado em uma de suas três obras denominadas Delivered in Voices. Ali, exercitando formas ampliadas de escuta, numa escultura logo enxergamos um meteorito em seu aparente silencio dos átomos, moléculas ou íons, reunidos de forma cristalizada, canta tridimensionalmente impregnado por ondas eletromagnéticas. Se para tudo existe um inverso, matéria e anti- matéria, estas falas ali – sim, além do poeta, o meteorito fala – podem ser anti-vozes. Uma voz encobre ou descobre. Uma voz dá profundidade ao eco silencioso desta fala som vocal do sentido, mesmo que seja outro mundo: um meteorito pode ser fragmento de planeta.
O corpo pode até esquecer o corpo neste falante onde caminhos inversos convivem: Dylan Thomas agora deixa escapar once it was the colour of saying. Nesta voz do poeta, não apenas um meio para produzir palavras, não apenas o poder da convicção da fala, mas o gosto nas remarcáveis permutas eletromagnéticas junto a este outro eco meteórico, resto de planeta desintegrado. Com essa obra Tunga me lembrou o que disse Whitman, “sou extenso, contenho multidões”. Foi também nessa multiplicação que Chico Dub, curador e criador do Festival Novas Frequencias, me convidou para performar nessas três esculturas naquela edição em 2016. Numa escultura Dylan Thomas, em outra escultura ondas amplificadas desta planta chamada espada de São Jorge, também captam e transmitem a voz infantil, herdeira de um tempo que lhe foi tomado quando retirada deste mundo precocemente. A espada ritualística que é de Jorge mas também de Ogum, brada sua fala inaudita afastando vibrações negativas.
Numa outra escultura, lobo conduto: um cristal, também gelo e quartzo como queriam os gregos da Antiguidade, são condutores de geometria vibrando em seu tamanho. Quanto maior o cristal mais grave a frequência de suas ondas, inversamente, quanto menor, mais aguda. A sonoridade vibra emanações elétricas, condutoras de mensagens precipitando fortes, suaves, escutando o poeta entregar vozes de lobos. Phantázein: fantasma ou fantasia. Finalmente, mas não por fim, naquela outra escultura um microfone evoca Orfeu, encoberto pela argila que um dia o criou. Sendo a cor desta fala transparente, numa lira de mais cordas – lira de Orfeu – cada corda ampliando o silencio de alguma outra corda ainda muda. Nesta geometria de corda-vozes, cargas elétricas estão dispostas em arranjo fônico sussurrando: voz acorde outra voz adormecida.
Junto ao performer e bailarino Fred Paredes, que soube traduzir belamente minhas sugestões – no roteiro onde destaquei movimento de planetas, formas de caminhar dos lobos, ressonância de cristais, entre outras – para realizar esta série de intervenções nas esculturas sonoras. Lembrando que algumas dessas vozes habitam outros mundos, outras apenas estavam ali quase quietas em sua fala peculiar, palavra e som transformando todo o corpo em uma boca: disse Allen S. Weiss, apenas quando todo nosso corpo se transforma numa boca é quando verdadeiramente conseguimos falar. Bocas, vozes, palavras, plantas, cristais entregues. Delivered in Voices, afinal se estabiliza no calor desta fusão ordenada, vozes estavam sendo entregues e a principal, Tunga-voz ali presente como sempre vai estar, até porque já foi dito “seja qual for o caminho que escolher, o poeta já passou por ele antes.”
2020 marcou dez anos do Festival Novas Frequencias e desta vez o convite foi para que colocasse imagens em trechos de músicas de Jocy de Oliveira. Meus filmes, alguns feitos para instalações, muitos outros para futuros trabalhos, venho realizando há cerca de dez anos, com muito material ainda inédito. Dessa vez utilizei parte de minhas imagens editando sem pretender ilustrar a música, mas desenhando uma narrativa visual paralela que não destoasse das composições de Jocy. Desafio ousado mas boa surpresa com os resultados, apreciei levar adiante construindo narrativas visuais possíveis para histórias de outro, como se mais uma voz fosse ser entregue.