Um ouvido por um olho
um ouvido por um olho
“but all that radio is, Morty,
is making audible to your ears
what was already in the air and available to your ears,
but you couldn’t hear it…
in other words, all it is which you’re already in.
You are bathed in radio waves”.
– John Cage conversation with Morton Feldman
1966-67
Talvez você não saiba mas, bem antes de poder enxergar algo já escutava. Aos quatro meses e meio o banho de sons começou ali
mesmo dentro daquela barriga onde você crescia captando a voz dela, ou seu coração batendo, seus intestinos funcionando…quando sua mãe respirava, ria, engulia, soluçava….você escutava. Muito antes de ver algo, e também sentir gosto de alguma coisa ou enxergar uma cor… também o tato era improvável porque tudo flutuava. Apenas o som existia.
Então você saiu daquele banho sonoro: nasceu.
Rápido e instaneamente todos os outros sentidos, – lembra Walter Murch1 – entram em cena, e os sons diminuem de importância.
De fato a separação entre som e imagem em nossa experiência vital não existe (a menos que exista alguma deficiência física). É muito difícil imaginar um universo, um mundo, absolutamente surdo mudo. Mesmo trancado em uma câmara totalmente isolada de sons – provou John Cage – acabamos escutando nosso coração batendo, nosso sangue fluindo pelas artérias, para nem citar nossa barulhenta respiração. Não por acaso, vários artistas na segunda metade do século XX se interessaram em integrar trabalhos plásticos com sons. Mas antes mesmo dessa época outras artes já trabalhavam com imagem e som – cinema, para dizer o mínimo.
Esse olho tem dentes
Esse olho tem língua
Esse olho fala.
Um ponto pode estar eqüidistante no espaço. A questão será determinar este espaço: o vidro de um aquário sem água, aquele
aquário que é um estúdio de som … a distância entre o som e o crânio plugado direto em um headphone … o ponto entre seus ouvidos ou, apenas a distância entre suas orelhas ?
Os hemisférios cerebrais alternam afazeres da inteligência. Para cada lado da cabeça, direita ou esquerda, se atribuem qualidades específicas. Mas para ouvir, basta que as ondas inundem seus ouvidos vibrantes. Não faltam aparelhos que amplifiquem esta experiência, fazendo com que ouvir se multiplique no complexo espaço entre nossas orelhas. Então, alguém liga ou clica aquele botão na era dos mídias digitais quando o conceito do que se convencionou entender por “rádio” vem sendo demolido rapidamente nas lacunas e na homogeneização das práticas midiáticas globalizadas. ok uma grande revolução. mais uma… e novamente a ameaça padrão: o rádio vai morrer. Signos atuais de dissolução da centralização das mídias de massa como as emissoras virtuais, independentes, pessoais, interativas, representam mudanças significativas na tradição radiofônica, jogando luz em idéias centenárias como a sugestão “broadcast yourself” mensagem dos pioneiros do rádio Fessenden e
De Forest, hoje atual mote do youtube.
São apenas alguns passos nessa dança mas ninguém parece desistir dessa perspectiva que já se mostrou falha episodicamente, talvez porque, desta vez já desenhe alguma diferença estética mutante no horizonte: na radiodifusão multimídia o rádio tem imagens – e não apenas imagens sonoras.
Propostas cujas fronteiras, nem sempre bem delineadas, evoluem em contraponto ao diálogo entre artistas e teóricos quando percebem a arte do rádio independente se deparando com novas possibilidades. Sim, mais que uma ameaça se coloca um desafio estimulante para outra reinvenção radiofônica.
A questão da imagem no rádio
Não cabe alongarmos sobre as possibilidades da imagem, apenas gostaríamos de apontar duas percepções iniciais: a imagem que por si só já se apresenta sonora, como aquela em que se estoura bolhas de sabão; ou ventania, ou alguém falando ao pé do ouvido. Ao ver imediatamente escutamos algo imaginado.
Ainda mais indireta, a imagem que sugere escutas em suas referências: ao ver esses pés – posicionados como aqueles do quadro
A Sagração da Primavera, de Botticelli – sua memória se refere a História da Pintura desses pés ao mesmo tempo em que segue novos passos ao escutar cair pedras de galena sobre esses mesmos pés.
Dessa forma, a “imagem do rádio” é formada por uma série de referências que incluem o histórico do audio e visual.
Vale lembrar o impacto da voz de Jean Négroni no filme La Jetée, realizado em 1962 por Chris Marker. Reunindo fotografias, Marker construiu sua narrativa fílmica apoiada na voz confessional de Negróni, que depois disse “eu tinha uma voz grave ligeira de narrador”. Uma voz interior como tão bem define tantas falas radiofônicas. Semelhante a essa voz confessional, Derek Jarman em seu derradeiro filme “Blue” nada mais oferece do que azuis na tela lisa e os reflexos desta voz. Leituras que remetem a visão, assim como também em “Nouvelle Vague” Godard coloca continuamente Alain Delon recitando para si mesmo, nesta voz que, para tantos guarda um rádio. Outras propostas aparecem como exemplos, nem todas exatas, mas vale lembrar estas que se propõem a “ver a música” através de animação gráfica, ou desenhos animados.
A questão da interação entre arte e som, lembra Germanos Celant, está entrelaçada em toda a história da arte do século 17 ao 21, neste anseio por investigar espaço sensorial ou território que não se encaixe na tradição ocidental e suas coordenadas esquemáticas.
Assinala todo o curso da modernidade o desenvolvimento de relações sinestésicas entre diferentes linguagens de comunicação,
com o objetivo de encontrar um outro, uma outra ordem não convencional.
Mas até que ponto essas imagens são rádio?
Uma língua é o lugar de
onde se vê o Mundo e
no qual se desenham os limites
do nosso pensar e sentir.
Vergílio Ferreira, poeta portugues
O que fecha os olhos?
O que abre os ouvidos?
Se os ouvidos podem ver, ”rugir” então será a fala do leão entornada em nossos olhos. Mas resta a pergunta: como congelar a escuta numa imagem? Assistir ao filme E o Vento Levou na televisão ou gravado em formato DVD ainda é filme ou se tornaria um vídeo? Um arquivo em MP3 ainda é música? Um rádio que transmite mas não pertence a nenhuma emissora ainda é rádio? Rádio fora do rádio?
Rádio além rádio?
Produzir uma escuta no rádio pode ser caminho para renovar a percepção auditiva, de alguma forma revisitando a imagem pela
orientação do áudio. Sem perder o foco da escuta, sem perder o propósito desta escuta. Sim, tremendo desafio multimídia e parece evidente, ação ainda in progress.
um dia terei as palavras
e elas serão simpes
Jack Kerouac
O rádio pode agora levar você a mapas visuais.
palavras recompostas…
palavras desconstruídas …
palavras atravessadas…
vozes captadas
vozes compartilhadas por ouvidos que também enxergam com os
olhos. Um ouvido por um olho.
E sempre que alguém pergunta “isto é rádio?!”
O rádio nasce outra vez.
Este o novo desafio: manter a estética determinante na existência radiofônica mesmo adicionando imagens. Para isso será preciso que esta inclusão visual seja feita de forma sutil e inteligente, caso contrário vai ser julgada como “filme”, “televisão”, ou algo que não consiga se sustentar diante da própria história das imagens ou do rádio. Isto é, quando se consegue uma configuração radiofônica que interaja fortemente com a imagem visual, então é possível que encontremos este “rádio visual”. Buscando este novo caminho – ainda um work in progress – me deparei com a seguinte percepção:
trabalhos realizados em diferentes “rótulos” ou “áreas” estavam trilhando possíveis novas formas de rádio.