Rádio Rasgo de Luz

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da caixa do rádio ao rádio fora da caixa

Lilian Zaremba

 

soltando as amarras para melhor amarrar

“…em 1870, um novo cabo foi estendido entre a Inglaterra e a França para que Napoleão III enviasse mensagens de congratulações à rainha Victoria. Horas mais tarde, um pescador francês enroscou seu barco nesse cabo, sem conseguir identificá-lo: não parecia a cauda de um monstro marinho nem uma nova espécie de sereia dourada…resolveu cortar tudo fora e levar um pedaço para casa”.[1]

Podemos considerar este relato à um dos primeiros conceitos de “rádio” relacionado ao rompimento das amarras do modelo tecnológico da telegrafia, oficialmente soltas pelo inventor norteamericano Reginald Fessenden ao realizar naquele

natal de 1906, a primeira transmissão de voz utilizando o alternador de voltagem, nova concepção de amplitude modulada sonora.[2]

Por esta mesma época a soma dos componentes já reunia experimentos importantes como as transmissões de sinais inteligíveis por Nikolas Tesla, entre muitos outros, acumulando diferentes equipamentos alinhando fios, alternadores, válvulas, lâmpadas, indicador de corrente, embora cada um desses equipamentos possuísse formato próprio, caracterizando seu inventor.

Seria preciso conceber uma caixa para abrigar componentes deste sistema, um marco que seria batido como estaca no coração de um vampiro: na virada do século 19 para o 20 acabaram de vez essas sonhadas assombrações sonoras quando o jovem telegrafista Marconi empreendedor autodidata, combinou as noções já apresentadas pelos pesquisadores alemães, ingleses, russos e italianos, arrumando-os em nova ordem patenteando esta caixa, a  caixa do rádio. Marconi não estava preocupado com representações humanas do éther ou na busca pela eletricidade do pensamento… procurava sinais, transmissão e sua recepção com objetivo claro: sucesso, dinheiro, utilidade militar.

Enquanto alguns buscavam utilidade comercial outros como Thomas Alva Edison, queriam compreender fenômenos desta aventura da comunicação no éther. Além do trabalho em seus laboratórios, se reuniam nos salões novayorkinos da Sociedade Teosófica, criada pela médium ucraniana Helena Petrovna Blavatksi.[3]

No embate entre as forças sobrenaturais do vampirismo e telepatia, o irlandês Bram Stocker em 1897 fincou o arco narrativo de sua novela “Drácula” onde os protagonistas, equipados com um fonógrafo, gravam, compilam e transmitem informações, rastreando os movimentos do conde sanguinário, interferindo em seus poderes verbais e telepáticos.

Duzentos e alguns anos depois o jornal eletrônico salta aos nossos ouvidos aquele áudio em algum lugar gravado. Você escuta o veemente pedido ao acionar o ícone na tela: “mais ataques contra o mal!”.

Esta voz foi atribuída a Saddam Hussein, embora ninguém saiba exatamente de onde ela veio e se ela, agora transformada em arquivo na rede, é realmente do ex-ditador iraquiano. O Saddam fantasma perambula por nossos ouvidos como o ressonante Drácula antes que sua fala fôsse apreendida pelo fonógrafo de Thomas Edison e no patamar do terceiro milênio o homem das cavernas tem sua voz reconstruída e disponibilizada na  Internet por cientistas…

Transmitida, gravada, reproduzida no ambivalente papel do fonógrafo esta voz no século 19 brota seminal problemática da linguagem radiofônica: as interferências, vazios, dead air, interrupções de lógica ou sentido, alcançando digitalizada o terceiro milênio conservando seus mistérios.  Fantasmática ainda que seus corpos tenham sido apreendidos em caixas “aparelhos de rádio”, permanece solta nas emissões embaladas ao sabor dos espectros na correnteza do sono e do sonho, esquecimento e lembrança, componentes essênciais da memória humana. Como já disse o biólogo Sidarta Ribeiro “o sono é um eco”.

 

o rádio fora da caixa

Na contramão deste desejo por caixas de rádio-entretenimento, sintonizando desenho das imagens de forma múltipla sem o fechamento das carnes e na imensidão da memória o seminal Manifesto La Radia localizou o território da radiofonia na imensificação do espaço (…) organismo puro de rádio sensações[4] sendo uma entre as propostas históricas aonde já repousam agitadas idéias de rádio sem os limites do empacotamento midiático. Na emergência contemporânea da reengenharia de produção apresentando últimas tecnologias para gravação, transmissão e recepção, diferentes nomes pretendem traduzir outros formatos…

Promessas incessantes oferecem “novos” rádios cada vez menores, podendo ser apenar um chip customizado grudado na sua camiseta. Um desses exemplos do século 21 o padrão de armazenamento MP4, codifica informações digitais em áudio, vídeo, possuindo função rádio. Similar a um radinho de pilha, por sua portabilidade e baixo custo[5] ao contrário deste primeiro, o MP4 apresenta vida útil curta, descartável.

 

rádio simulacrum rasgo de luz

“…todos os homens sonham, mas não da mesma forma (…) os que sonham acordados, esses são homens perigosos, pois realizam os seus sonhos de olhos abertos, tornando-os possíveis”.

(T.E.Lawrence)

O Museu Kiasma de Helsinque, ecoava oitocentos corpos sem corpos, aparelhos de rádio empilhados por Cildo Meirelles em sua escultura sonora intitulada “Babel” “…o rádio lida com o espaço de uma maneira peculiar (…) permite um viajar mais ilimitado. Eu tenho uma espécie de fascínio eufônico(…) o rádio me remete muito a esta idéia do distanciamento do sujeito de si mesmo.[6]

O distanciamento também permite avaliar a permanência de alguns conceitos como aquele rezando a “transmissão de mensagens através do éther”. Embora cientistas como Albert Einstein tenham derrubado a hipótese da existência deste quinto elemento do qual os objetos celestes incluindo a Lua, seriam compostos, evidências científicas não impedem o emprego deste termo por Josephine Bosma, competente teórica e crítica holandesa, ao abrir pronunciamento recente com a seguinte expressão: “…cabos e éther encontram o público e se tornam fisgados, trocados e abertos…”[7]

No campo da arte, nos lembra Marco Scarassatti[8] , o músico e construtor de plásticas sonoras Walter Smetak acreditava que “…som e luz advinham da mesma natureza, o Éter, pensamento muito semelhante ao dos alquimistas renascentistas (…) chegando a propor a criação de um departamento de plásticas sonoras, a fim de provar a tese de que o som e a luz provêem do mesmo agente, o Pai Ether… [9]

Em 1874 William Crookes químico britânico adepto do ocultismo, pensou ter descoberto uma “matéria radiante” prontamente apelidada radio-meter, na tradução literal, “rádio medidor”. Crookes imaginou este radio-meter …capaz de revelar uma força primal supostamente uniforme, um símbolo, a representação de uma verdade eterna. Um insight dentro do mundo”.[10]

Assim, uma das primeiras idéias de rádio tornada palavra deriva de luz, algo a ser vislumbrado e quantificado. Etimologicamente, “radius” é palavra latina, “radiare” ou seja, emitir raios ou irradiar, o que já nos leva a uma volta de 360 graus no assunto: afinal, ao menos em lingua portuguesa não se utiliza a palavar “irradiar” quando se refere a transmissão de mensagens por emissoras de rádio ?

Crookes, considerado um dos inventores na cadeia mater do rádio exclamou: Alere Flamman! A lâmpada da Ciência deve queimar!

Isto porque segundo o cientista, os meios adotados pelo homem para iluminar sua casa à noite caracterizavam sua posição na escalada da civilização. Daí o Oriente e seu betume fluido; a lâmpada dos etruscos ou a gordura de baleia impregnando os iglus dos esquimós…a vela…depois a lâmpada elétrica…

Luz e som nas correntezas do éther queimam lâmpadas enviando mensagens sem corpos. Um rádio eco simulacrum como aqueles rostos vistos em montanhas ou nuvens.[11]

Assim como a sombra que é e não é seu objeto transitam as falas neste território já descrito por Gregory Whitehead como o “…habitat natural da imaginação sem fios” sendo completado por Allen S.Weiss , “…ponto não localizável e misterioso onde já não se distingue ouvinte e rádio”.[12]

Exatamente nesta topografia sombra acústica[13] aonde um aleph de convergências se instala abrindo o espectro para a percepção de outros fundamentos para a linguagem radiofônica, colocamos um ponto de penumbra – rádio rasgo de luz – entre a voz sussurrante e sua reverberação, eco de cigarras ao entardecer entoando o fim da luz e seu calor esvaindo…na ocultação de um mecanismo de gravação e reprodução, transformado em espectro de luz, válvulas obsoletas ou vela incandescente, simulacrum sonoro na visão desta narrativa: o som só se estabelece quando as ondas se deslocam com o vento. É possível escutar … uma sombra acústica, um eco solar, uma miragem radiofônica…

 

quando rádio=arte

Lídia Camacho em recente estudo sobre radioarte lembra a resistência de alguns dos melhores radioastas[14] reunidos no grupo Ars Acústica quanto a estabelecer definições fechadas, por acreditarem ser o exercício da arte radiofônica uma disciplina que busca o juízo libertário longe das pretensões inócuas.[15] Feita a ressalva, Camacho propõe a seguinte definição …poderíamos dizer que radioarte é a obra criada por e para rádio, tendo como intenção expandir as possibilidades criativas e estéticas deste meio à partir de elementos que fundamentam este meio eletrônico: voz, palavra, ruídos, efeitos sonoros e silencio. Elementos que constituem uma linguagem e como tal, possuem uma gramática, mas também a capacidade de construir mensagens estéticas…[16]

No horizonte do terceiro milênio classificações diluídas como “radioarte” ou “arte sonora” podem oferecer decifração de signos da escuta nesta ponte construída por artistas como Marssares ao revelar linhas tangentes entre som e imagem, ou Paulo Nenflidio ao utilizar sinais telegráficos e radiofônicos captando paisagens sonoras do vento. Sugestões de horizonte bem mais amplo para esta radioarte não pretendem apontar tradução de rádio como linguagem visual mas incorporar o instrumento peculiar e preciso deste meio de comunicação à uma forma de pensar artística, se encaixando em diversos territórios que possam ser levados ao rádio e vice-versa, endossando considerações do compositor Rodolfo Caesar “…no lugar da hegemonia de uma linguagem sobre outras – a música sobre a poesia, a visualidade e o teatro (…) estamos ainda em estado de perplexidade diante da multi-sensorialidade, que eu espero se prolongue o quanto puder antes que sobrevenha o bafo congelante de projetos estéticos em pacotes fechados”[17]

Ressonância deste ar articulado no éther, esta dobra surgida fazendo-se ouvir como eco persistente na memória da radiofonia, faz avançar no retorno às origens nossa avaliação deste possível futuro.  Como se tivesse adormecido algo em seu longo, rico e produtivo caminho, este rádio ecoa…

Diferente daquela ninfa condenada por Hera a permanecer em silencio apenas falando quando se referissem a ela, só conseguindo reproduzir e repetir as últimas palavras de cada fala da outra pessoa, este eco radiofônico está impregnado por discursos artísticos construídos ao longo de sua História.

Por hora parece importante frisar a existência de ricas e diversas propostas não atreladas necessariamente, a uma estação emissora ou caixa embora caiba a pergunta: o quanto de rádio ainda existe neste rádio?

Ainda é cedo para fecharmos respostas, por esta razão evocamos a equação rádio = música formulada por Glenn Gould[18] ao resumir seus rádiodocumentários.

Na expectativa de momentos aonde rádio=arte sintonizando estas emissões além caixas mesmo quando delas nos utilizemos, preferindo encerrar estas breves anotações ao som de um eco radiofônico captado nas palavras de Philipe Quéau: “ podemos fazer valer a metáfora como modelo, isto é, uma aproximação razoável de uma realidade difícil de explicar exatamente” .[19]

 

Notas


[1] Stephenson, Neil – “Mother earth mother board”.

[2] A amplitude modulada foi sugerida anteriormente por Ernest Alexanderson. É preciso frisar que o invento do rádio é constituído por uma extensa cadeia de inventores, experimentos e acontecimentos. Parte dela merece destaque na historiografia tradicional, outra vem sendo resgatada, as citações neste artigo são apenas pequena parte deste processo.

[3] Washington, Peter – Madame Blavatsky’s Boom: A History of the Mystics, Mediums, and Misfits Who Brought Spiritualism to America.

[4] La Radia – manifesto por Pino Masnada e F.T.Marinetti, pode ser lido no site da Kunstradio.

[5] este custo do MP4 varia por conta de seu fabricante e qualidade, os mais baratos são os aparelhos genéricos fabricados em larga escala na China, frágeis, por isso a relação de piada no Brasil aonde ganharam o apelido de ipobre relacionando  com o fabricante mais complexo, resistente e sofisticado, o aparelho ipod, tecnologia da empresa norteamericana Apple.

[6] Declarações do artista contidas na reportagem “Eleição de Cid Ferreira pode tirar Cildo Meireles da mostra”, em 30 de junho 2006, jornal Folha de São Paulo, caderno E pg. 6.

[7] Bosma, Josephine – Net.Radio and the public Space, in: Symposium Recycling the Future 4/12/97

[8] Músico, compositor , construtor de plásticas sonoras, professor universitário paulista.

[9] “Scarassatti, Marco Antonio Farias –  “Retorno ao Futuro: Smetak e suas Plásticas Sonoras”. dissertação de mestrado, UNICAMP, Campinas 2001.

[10] Hagen, Wolfgang – palestra On the Place of Radio, proferida na abertura do simpósio Recycling the Future , rádio ORF, Viena, 4 de dezembro, 1997.

[11] Simulacrum entendido aqui em sua idéia pré histórica, aonde os homens costumavam reconhecer faces na natureza, em pedras que acabavam reverenciadas por suas qualidades imaginadas especiais.

[12] Weiss, Allen S. – Phantasmatic Radio. Durham,1995.

[13] sombra acústica –  termo utilizado para indicar uma área aonde as ondas de som falham por conta de obstruções topológicas, correntes de vento, fenômeno semelhante ao que acontece na luz quando enxergamos miragens.

[14] Radioasta – palavra utilizada pela autora, e de uso em língua espanhola e portuguesa, para identificar os profissionais que atuam na área da criação radiofônica, possível tradução para radiomaker, termo consagrado em língua inglesa.

[15] Camacho, Lídia – El Radioarte, revisón histórica, origem y evolución em Europa y desarrolo em México. Capitulo 1, pg 50. México, 2006.

[16] Camacho, Lídia – op.cit pg.50

[17] Vaz, Felipe Fessler – Elementos da Arte Sonora, dissertação de mestrado, pg 97, ECO-UFRJ, 2008.

[18] Pianista e compositor canadense, realizou nos anos 60 a Trilogia da Solidão, três programas de rádio, classificados como “rádiodocumentários contrapontísticos”, para a emissora Canadian Broadcasting Company.

[19] Quéau, Philipe – engenheiro de telecomunicações, pensador francês, publicou livros como Éloge de la vie des langages à la syntèse des images. Editions Champ Vallon, 1986.

 

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Fotografia: Lucia Helena Zaremba